O que é retrofit e como ele está transformando a paisagem das grandes cidades brasileiras

A requalificação de prédios antigos tem impulsionado células de regeneração em grandes centros urbanos do país, especialmente em São Paulo. A intervenção, muitas vezes acompanhada de alteração no tipo de uso do imóvel, renova não somente os edifícios em si como também a paisagem – E, ainda que com ressalvas, traz uma pontinha de esperança à vida urbana

Reformar, renovar, reabilitar, requalificar, restaurar. Todos esses verbos cabem no termo comercial “retrofit”, adotado pelo mercado imobiliário para se referir a projetos e obras que dão vida nova a prédios antigos, com algumas (ou muitas) décadas de existência. As intervenções, para além de repaginar a fachada, atualizam as construções em termos de normas técnicas (de escadas de incêndio e acessibilidade a ventilação e iluminação naturais, por exemplo), adaptam imóveis comerciais para uso residencial ou misto e, muitas vezes, alteram as plantas das unidades criando um mix mais diversificado de tipologias (de estúdios a apartamentos com três dormitórios) na mesma torre.

A tendência está em expansão natural em cidades como São Paulo por diversas razões. “Até os anos 1990 não havia necessidade de retrofit, porque os prédios, construídos em maior volume a partir dos anos 1950, ainda eram relativamente jovens”, afirma o francês Maxime Barkatz, CEO fundador da incorporadora Ilion Partners, que já concluiu 17 projetos do tipo na capital paulista e tem mais dez em andamento. Outra questão é o atual marketing do setor. “De uns 20 anos para cá, aquela propaganda que falava em morar em condomínios tranquilos, ouvindo o som dos passarinhos etc., mudou porque as pessoas estão voltando a querer morar mais perto do centro, do trabalho, da oferta de serviços e lazer”, analisa. Agora, o match perfeito é estar a poucos quarteirões de tudo que se precisa, escapando do trânsito caótico e da preocupação com a logística dos deslocamentos ao longo do dia – cujo saldo é artigo de luxo: tempo.


Conexão com a cidade
Mas como oferecer imóveis no centro quando a oferta de terrenos para novos empreendimentos (os chamados greenfields) é tão escassa e demolir grandes estruturas não costuma ser tão simples? “Essa é uma oportunidade de olharmos para os prédios abandonados, degradados ou com baixa ocupação no centro, mas que têm grande qualidade arquitetônica”, observa Camille Bianchi, arquiteta à frente do escritório franco-brasileiro Readymake, responsável por quatro projetos de retrofit na região,todos com o térreo comercial – algo muito comum em Paris, ela lembra. “Em geral, são edifícios construídos entre os anos 1940 e 60 com grandes aberturas, pé-direito alto e espaços amplos, características muito interessantes”, avalia Camille, que cuidou da renovação do edifício residencial Marajó – a obra recuperou aspectos do projeto original, como os tacos de madeira e os caixilhos de ferro. Ela conta que o prédio foi um dos primeiros erguidos nas imediações, mas que se viu decadente após a construção do vizinho Minhocão, em 1971 – a exagerada proximidade com a via elevada injetou muito barulho nos apartamentos, degradou o entorno e fez despencar o valor dos imóveis nas décadas seguintes. Hoje, o retrofit das 21 unidades, vendidas rapidamente, recriou uma relação singela com a cidade. “Plantamos duas árvores que oferecem sombra, colocamos um banco,iluminamos a calçada. São coisas simples que têm um efeito imediato no quarteirão”, diz.

Repaginar o entorno dos prédios renovados é algo fundamental para a arquiteta Marina Acayaba, do AR Arquitetos, responsável pela requalificação do Edifício Rosa, construído para uso comercial nos anos 1970, na nobre esquina das avenidas Paulista e Angélica. “A maneira como o prédio se reinsere na cidade é sempre muito importante. Aqui transformamos o antigo paredão cego que ocupava toda a frente da Angélica em um térreo com vista para as novas lojas recuadas [entre elas a Gomide&Co, tradicional galeria de arte paulistana], acessado hoje por uma escadaria com floreiras e bancos que atraem as pessoas para uma pausa no agito da cidade”, conta Marina. O retrofit ainda incluiu tecnologia e reduziu quase um terço dos gastos de energia com o novo sistema de ar-condicionado central e a fachada (agora livre das condensadoras de ar), que intercala esquadrias de alumínio com panos de vidro duplo autoportante, mais eficientes em termos de conforto termoacústico.

Sustentabilidade é o ponto pacífico
Obras desse tipo consomem muito menos materiais porque reaproveitam as estruturas existentes. “Sem dúvida alguma, é o modelo de desenvolvimento urbano mais sustentável que existe”, afirma Gustavo Cedroni, sócio-diretor do Metro Arquitetos, responsável por uma série de projetos do gênero em São Paulo, Salvador e Vitória. Mas não é “só” isso. “Cada vez que transformamos um prédio abandonado ou degradado, que era um problema para a cidade e as pessoas, resgatamos a ideia de que podemos construir uma cidade que dá certo”, continua. Para a incorporadora Somauma, retrofit é isto: criar células regenerativas na cidade e gerar impactos que vão muito além das fronteiras de cada prédio requalificado. Em junho, a empresa iniciará a obra de renovação do Edifício Virgínia (dos anos 1950), no centro de São Paulo, que prevê cobertura verde, energia fotovoltaica, captação de água de chuva, entre outras soluções ecológicas. “Além disso, vamos trabalhar com a comunidade do entorno. Em parceria com a Ocupação 9 de Julho e o IED [Istituto Europeo di Design], montaremos uma marcenaria para reaproveitar materiais da obra, capacitando pessoas dos movimentos de moradia e transformando tudo em mobiliário, gerando receita e trabalho para a ocupação”, diz o arquiteto Marcelo Falcão, sócio e cofundador da empresa, que estuda maneiras de viabilizar também projetos de habitação popular. Recentemente, eles fizeram um levantamento que estima haver mais de 1,4 mil imóveis subutilizados no centro.

Ode à boa arquitetura
Mesmo degradados, edifícios antigos da capital paulista surpreendem quem os visita.“Recuperamos piso de madeira maciça encoberto por piso vinílico e já encontramos perfis de ferro que descobrimos serem de uma liga de ferro inglês que não existe mais no mercado”, relata Gustavo Cedroni, para quem a qualidade do que se encontra chama a atenção. Para ele, essa lógica diferente que há nos projetos de retrofit incentiva reflexões importantes sobre o conceito de boa arquitetura e a importância do urbanismo. “Nesse sentido, emburrecemos ao longo do tempo, mas o resgate atualizado desse passado pode desenhar um futuro melhor.” Exemplo disso é o novo Basilio 177, a ser lançado em meados do ano: uma renovação de mais de 35 mil m² que transformará um importante prédio no centro de São Paulo desenhado na virada para o séc. 20, com assinatura de Ramos de Azevedo & Severo Villares, inaugurado no final dos anos 1930 para abrigar a sede da Companhia Telefônica Brasileira. Na versão 2023, o condomínio terá 274 apartamentos residenciais distribuídos em três torres, além de espaços comerciais, áreas de lazer, coworking e piscina na cobertura.

Reaproveitar é melhor que demolir
Também na zona sul do Rio fica outra iniciativa que parte de uma estrutura preexistente – desta vez, porém, um esqueleto de concreto abandonado, concebido para ser um cassino. O novo Canto Rio e Canto Mar, empreendimento com assinatura dupla do Architects Office (AO-SP) e Triptyque Architecture, a ser entregue no final de 2024, preferiu tirar proveito do que já havia no terreno para criar um imponente residencial de duas torres, uma com vista para o mar, grandes varandas desencontradas, generosas áreas internas e quatro suítes, e outra voltada para a área urbana, com estúdios destinados ao público jovem. “Precisamos chegar cada vez mais perto da ideia europeia de sempre retroalimentar as cidades, sem precisar construir mais”, defende Sávio Jobim, diretor de criação de arquitetura do AO-SP.

Pensando nisso, no Itaim Bibi, em São Paulo, o empresário Alberto Alves, morador de um prédio residencial dos anos 1970, recentemente convenceu os demais proprietários a aderirem a um retrofit para renovar a fachada, transformando as varandinhas originais em espaçosas varandas gourmet. Deu tão certo que um amigo quis repetir a ideia em seu prédio e, assim, ele abriu a BR Retrofit, especializada nesse tipo de reforma. “O processo é longo porque requer aprovação de 100% dos condôminos, mas usando uma estrutura metálica com pilares independentes do edifício, conseguimos uma obra rápida e limpa”, conta a arquiteta Milene Abla Scala, titular do Vivá Arquitetura, responsável pelo segundo projeto. “Além de oferecer mais conforto aos apartamentos de 350 m², a grande vantagem é a maior liquidez e valorização dos imóveis. Cada proprietário investiu 340 mil reais na renovação e viu o valor do patrimônio subir de 9 milhões de reais para até 11,6 milhões de reais”, calcula o empresário.

Retrofit bom e do bem
No centro paulistano, a incorporadora Planta.Inc é hoje um player importante desse mercado de retrofit, com dois edifícios entregues (os charmosos Magdalena Laura e União Continental) e vários imóveis comprados na Vila Buarque, com projetos no forno que preveem a conversão de uso comercial para residencial, voltados à locação e entregues totalmente mobiliados e equipados. “Para ser um bom retrofit, precisa ter diversidade de tipologias no mesmo prédio, apartamentos com vaga para bicicleta, atender às normas de desempenho, ter boa arquitetura e um programa propositivo para o bairro, com fachada ativa, por exemplo”, defende Guil Blanche, CEO e fundador da empresa. “Não é só pintar fachada, fazer maquiagem,tem que impactar de verdade”, completa.

Blanche afirma que a nova Lei do Retrofit, aprovada em 2021, que estabeleceu o programa paulistano Requalifica Centro, chega em boa hora, mas que é preciso pensar em estratégias para incluir quem vive em residências precárias na capital. “Cerca de 385 mil pessoas poderiam morar no centro nos imóveis vazios ou subutilizados, ou seja, um terço do déficit habitacional da cidade”, afirma. A pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP e professora da FAU Paula Freire Santoro lembra que os movimentos de moradia lutam há décadas por retrofit em prédios abandonados ou ociosos. “Mas eles não estão sendo contemplados nessa nova onda de projetos”, lamenta. Segundo ela, ainda que as requalificações tenham valor em si, quem mora no centro está assustado com a alta no preço do aluguel, pois esse movimento tem gerado uma elitização do parque imobiliário. “A cidade tem hoje 52 mil pessoas em situação de rua, um centro vivendo um caos social e a prefeitura criou um programa que, ao oferecer incentivos fiscais como perdão de dívida de IPTU para reformar prédios antigos, abre mão de recursos públicos para ajudar a quem, de fato?”, questiona. “O estado precisa desenhar políticas públicas para a população mais vulnerável e não para o mercado”, reforça Paula. O que vai acontecer daqui para a frente depende desse complexo xadrez em (re)construção nas cidades.

Cada vez que transformamos um prédio abandonado ou degradado, que era um problema para a cidade e as pessoas, resgatamos a ideia de que podemos construir uma cidade que dá certo
— Gustavo Cedroni

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