O efeito prático do novo Plano Diretor na vida do paulistano

Comissão publica nova versão de texto que deve ser votado em segundo turno na Câmara Municipal. Relator recuou em parte das propostas após pressão de urbanistas, movimentos sociais e oposição

A Câmara Municipal de São Paulo deve votar o projeto de revisão do Plano Diretor da cidade em segundo turno nesta segunda-feira (26), após dois adiamentos. A Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente divulgou na quarta (21) a nova versão do texto.

As mudanças se deram por causa de impasses em torno da proposta. Votada em primeiro turno na Câmara no dia 31 de maio, a primeira versão do plano apresentada pelo relator, o vereador Rodrigo Goulart (PSD), foi alvo de protestos da oposição, de urbanistas e de movimentos sociais, que criticam seu conteúdo e tramitação acelerada.

Neste texto, o Nexo lembra o que é o Plano Diretor, mostra quais as principais alterações propostas pelo texto discutido na Câmara Municipal paulistana e explica como ele pode mudar na prática a vida de quem vive na maior metrópole do país.

O que é o Plano Diretor
Aprovado por lei municipal, o Plano Diretor define como uma cidade pode ser ocupada, definindo parâmetros de crescimento e preservação. É aplicado no Brasil desde a sanção do Estatuto da Cidade, lei federal de 2001 que define como deve ser a política urbana.

Criar um plano é obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes, que integram regiões metropolitanas ou estão sob influência de empreendimentos, entre outros. O governo municipal deve revisar a lei que o institui, pelo menos, a cada dez anos. Segundo a legislação, esse processo deve incluir a participação da sociedade.

O atual Plano Diretor de São Paulo foi aprovado em 2014 e orienta o desenvolvimento da cidade até 2029. Em 2023, a lei está passando por uma revisão intermediária. O texto tem o objetivo de tornar São Paulo uma cidade mais justa e equilibrada, como definiu ao Nexo Fernando Mello Franco, professor de arquitetura do Mackenzie e ex-secretário municipal de Desenvolvimento Urbano:

“O Plano Diretor não é uma lei que muda a vida de alguém no dia seguinte. Ele estabelece diretrizes que transformam a cidade ao longo do tempo. [O Plano Diretor atual] tenta estabelecer a possibilidade de São Paulo ser uma cidade socioambientalmente justa, equilibrada, onde o direito à moradia seja pleno e haja maior oferta de serviços, bens, empregos e moradia onde há transporte público”

O que há na proposta de revisão
A proposta de revisão substitui o texto de 2014. O governo municipal, comandado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), enviou aos parlamentares a primeira versão do substitutivo em abril. O texto foi alterado no mês seguinte pelo relator Rodrigo Goulart, que publicou a segunda leva de mudanças na quarta-feira (21).

O projeto atual aumenta as permissões para construções em São Paulo, principalmente nas áreas sob influência dos chamados eixos de transporte (o entorno de corredores de ônibus e estações de metrô), onde há mais incentivos da prefeitura para a expansão imobiliária, incluindo a possibilidade de construir prédios mais altos.

A primeira versão do relatório de Goulart, de maio, propunha medidas que aumentariam o adensamento não só nessas áreas, mas no restante da cidade. Parte delas, no entanto, caiu, por falta de consenso. Urbanistas, vereadores de oposição e movimentos sociais criticaram o relator por privilegiar demandas do mercado imobiliário, ignorando seus efeitos na cidade.

Goulart adiantou as medidas que mudariam ou cairiam numa entrevista na terça (20) ao jornal Folha de S.Paulo. A proposta seria votada na Câmara no dia seguinte, mas foi adiada para sexta (23) e, depois, para segunda (26). Caso seja aprovado, o texto segue para sanção ou veto de Ricardo Nunes.

O que ficou no plano
EIXOS DE TRANSPORTE

A proposta expande as áreas sob influência dos chamados eixos de transporte. O texto propõe que ela cresçam de 300 metros para até 400 metros (nos casos dos corredores) e de 600 metros para até 700 metros (no caso do metrô). A versão anterior de Goulart propunha que a faixa em torno dos ônibus aumentasse até 450 m, e o raio em torno dos metrôs, até 1 km, mas ele recuou.

FUNDURB

O texto também prevê a possibilidade de usar dinheiro do Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano de São Paulo) para recapeamento de ruas e avenidas. Originalmente, o fundo é destinado à habitação de interesse social e a melhorias urbanas como obras de mobilidade. A proposta de Goulart foi criticada, mas está mantida no texto.

O que caiu no plano
OUTORGA ONEROSA

Caiu a proposta de Goulart que criava uma nova forma de pagamento da outorga onerosa, taxa paga pelas empreiteiras para construir acima do limite básico da cidade. A proposta era que, no lugar do dinheiro, as empresas pagassem parte da outorga na forma de obras. Agora, o valor da taxa volta a ser pago só em dinheiro.

MIOLOS DE BAIRROS

Caiu também a proposta que mudava o chamado coeficiente de aproveitamento, que determina quantas vezes a área construída de um empreendimento pode superar o tamanho do terreno sem a cobrança da outorga onerosa. A medida elevava o coeficiente a 3 (em terrenos de 100 m², seria possível construir 300m² sem pagar), o que incentivaria a construção de prédios mais altos, inclusive nos chamados miolos dos bairros.

MICROAPARTAMENTOS

Caiu ainda a proposta de Goulart que incentivava a construção de microapartamentos. O texto original, de Ricardo Nunes, permitia a construção de vagas de estacionamento sem cobrança nos eixos de transporte apenas para empreendimentos com unidades de ao menos 30 m². A versão do relator, que veio depois, flexibilizava essa regra. Agora, o texto volta a ser o da prefeitura.

O que o texto muda na prática
A proposta da revisão do Plano Diretor de aumentar a verticalização em partes da cidade tem impactos sobre a paisagem local, a mobilidade urbana — pois pode aumentar a quantidade de carros na rua ou de pessoas no transporte coletivo —, a saúde e o meio ambiente, com a formação das chamadas ilhas de calor, áreas de altas temperaturas nas zonas urbanas.

Defensores da proposta de ampliar as áreas sob influência dos eixos de transporte dizem que a medida pode aproximar as pessoas do transporte público. Críticos dizem que o aumento de edifícios sobrecarrega os bairros. Além disso, as construções nessas áreas têm estímulos para vagas de garagem, o que contraria o objetivo de diminuir os carros na rua.

“Temos um trânsito muito intenso, e isso pode ficar pior”, disse ao Nexo Laisa Stroher, professora na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisadora no LabCidade, da USP (Universidade de São Paulo). Infraestruturas como as de água, drenagem e esgoto também podem não suportar o adensamento, na avaliação de urbanistas.

A ampliação desses eixos não deve ocorrer imediatamente após a aprovação do projeto na Câmara e a sanção por Nunes. O Plano Diretor vai autorizar que a extensão seja feita pela Lei de Zoneamento, cuja revisão a prefeitura enviará à Câmara até o fim de junho, segundo informações do jornal O Estado de S. Paulo.

Mais construções para quem?
Mello falou também nos impactos das novas unidades habitacionais para a moradia. Defensores da revisão do Plano Diretor afirmam que o texto tem incentivos financeiros para que os edifícios construídos sejam direcionados à habitação de interesse social (ou seja, para famílias de menor renda), mas, na prática, não há fiscalização sobre quem as habita.

“São Paulo tem batido recordes de lançamentos de imóveis, mas o deficit habitacional não está se reduzindo na mesma proporção”, disse o professor. “A produção [dessas unidades] está sendo feita a partir da lógica de adensamento construtivo, que é laje sobre terreno. Só que a cidade não é vivida por lajes — é vivida por pessoas.”

“O que pode definir a urbanidade e a qualidade de vida na cidade é o uso da cidade. A quantidade de gente morando nesses terrenos não está na conta [do Plano Diretor]. Esse movimento de ampliação do potencial construtivo é de interesse exclusivo da lógica de produção do capital imobiliário, não da lógica de reprodução da vida”

Stroher e outros pesquisadores do LabCidade escreveram no fim de maio que, nesse sentido, a revisão do Plano Diretor aprofunda problemas que o texto atual já tem. Segundo a publicação, os lançamentos imobiliários recentes em São Paulo têm se concentrado em áreas valorizadas, privilegiando a alta renda e produzindo imóveis para investidores, em vez de moradia.

Puxados por incentivos do último plano para moradia popular, empreendimentos lançaram um boom de apartamentos com preço de até R$ 350 mil em São Paulo nos anos recentes. Estudo do LabCidade mostra, no entanto, que essas unidades estão longe dos eixos de transporte. Quando estão próximas, são muito pequenas (com área média de 35 m²) e têm alto preço por metro quadrado, o que faz com que não cheguem a quem mais precisa.

52,2 mil pessoas viviam em situação de rua em São Paulo até fevereiro de 2023, segundo levantamento da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) com base em dados do Cadastro Único da prefeitura.

O que o plano não muda
Outra crítica de urbanistas ao substitutivo do Plano Diretor é que o texto parece ignorar outras dimensões da vida urbana que não as edificações, como desenvolvimento, cultura e meio ambiente. “Está se confundindo o Plano Diretor com os rumos do mercado imobiliário. A cidade é muito mais que isso”, disse Mello ao Nexo.

Para ele, o meio ambiente é um dos temas que merecem mais espaço no texto, considerando o atual cenário de mudança climática e seus impactos sobre o espaço urbano (agravando enchentes, por exemplo). “Deveríamos aproveitar a revisão do Plano Diretor para propor medidas de mitigação e adaptação [à crise]”, afirmou.

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