Com tombamentos, bairros nobres de São Paulo tentam se blindar de verticalização

Em algumas áreas de Pinheiros e Paraíso, estão proibidas demolições até que Conselho de Preservação do Patrimônio analise pedidos de tombamento

Uma curta caminhada é o suficiente para avistar diversos tapumes de obras ou estandes de vendas de apartamentos nas ruas de Pinheiros, bairro nobre da Zona Oeste de São Paulo, que virou queridinho das empreiteiras nos últimos anos. Mas desde o último dia 2, ficou mais difícil construir na região, já que o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp) abriu um processo de tombamento de áreas do bairro.

Com a abertura do processo, cerca de 600 imóveis estão provisoriamente tombados — entre sobrados, vilas inteiras, prédios baixos, igrejas e escadarias. Movimento semelhante ocorreu no Paraíso, na Zona Sul, que desde maio tem uma parte protegida de demolições e novas construções, enquanto o Conpresp analisa um pleito de tombamento do bairro.

Por trás do acionamento do Conpresp por associações de moradores, está o desejo de tentar blindar certas áreas das cada vez mais corriqueiras demolições de casas e prédios antigos de poucos andares, que dão lugar a novos empreendimentos imobiliários. O movimento de renovação ganhou força nos últimos dez anos na cidade devido aos incentivos do Plano Diretor e da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei de Zoneamento) para construções de prédios maiores em regiões bem abastecidas de transporte público.

Esses processos se tornam palcos de conflitos entre moradores que se engajam na manutenção de características e identidade dos bairros e empreiteiras que buscam regiões desenvolvidas para erguer seus edifícios, próximas a estações de metrô, corredores de ônibus e serviços.

Proteção imediata
Assim que é aberto um processo de tombamento, imediatamente começa a valer uma proteção para as áreas que estão sendo analisadas: fica impedida qualquer demolição e projetos de novas construções. Por outro lado, há o entendimento de que construções em andamento podem continuar. O nível de proteção varia caso a caso, em alguns fica proibido qualquer alteração na fachada, em outros o tombamento impede qualquer mudança nas características do imóvel como um todo e, quando se trata de manchas urbanas maiores, muitas vezes o que se visa fixar é a manutenção do gabarito máximo de construção de uma rua — ou seja, em locais em que há majoritariamente predinhos, a ideia é proibir edifícios mais altos que mudem as características do entorno.

Como a proteção vale imediatamente até uma deliberação definitiva sobre o tombamento, somente o fato do Conpresp abrir o processo já tem impacto no mercado imobiliário, pois tem potencial de atrasar obras e comprometer projetos futuros, já que a análise definitiva pelo órgão não tem prazo e pode levar anos. Empresas e cidadãos que tenham relação e interesse nas áreas sob análise podem se manifestar no processo para argumentar contra ou a favor da proteção.

No Paraíso, por exemplo, a Vila Liscio, que fica na Avenida Brigadeiros Luís Antônio e abriga casas da década de 1930, é um dos locais sob a proteção temporária. Ocorre que quando o processo foi aberto no Conpresp, a vila já havia sido comprada pela JSTX Participações, empresa que agora busca convencer o conselho de que o tombamento não se justifica. Enquanto isso, a construtora está impedida de demolir qualquer um dos imóveis que comprou na vila.

Em ofícios enviados ao órgão entre agosto e setembro obtidos pela reportagem, a empresa apresenta pareceres feitos por arquitetos e argumenta que o procedimento tem um “claro propósito de impedir a política de desenvolvimento urbano proposta para a região, intentado por interessados que buscam a defesa de interesses egoísticos tipicamente caracterizados como NIMBY [um acrônimo em inglês que significa Not In My Backyard, ou ‘não no meu quintal’]”.

Em nota, a empresa afirmou que comprou os imóveis em 2022 “totalmente livres e sem qualquer impedimento” e, “tão logo tomou conhecimento do início do processo de análise de tombamento no Conpresp para algumas casas, imediatamente suspendeu as obras nos respectivos imóveis”. A empresa ainda entende que “não há motivo para o tombamento das casas, apresentou pareceres técnicos ao Conpresp neste sentido e aguarda os desdobramentos dentro dos trâmites legais”.

Ricardo Ferrari Nogueira, presidente do Conpresp, se esquiva de comentar sobre esses casos específicos porque eles ainda estão sob análise do órgão, mas destaca que é preciso levar em consideração “os precedentes” ao analisar o tombamento de uma área inteira, e diz ser difícil conciliar os diversos interesses na cidade.

— O conceito de patrimônio é amplo e é um postulado a preservação do patrimônio. A conciliação passa pelo precedente, se há precedentes que permitem construções, eles têm que ser considerados para não haver incoerência e uma falta de compreensão até do que se quer ou daquilo que existe. E tem uma situação que é muito peculiar. Antes nada era protegido, agora tudo tem que ser protegido? A gente tem que ser bastante cuidadoso, porque os interesses não são ilegítimos, mas tem os postulados de conceito de patrimônio amplo, a apropriação do patrimônio tem que se dar pelos cidadãos e os precedentes têm que ser considerados nas regiões — aponta.

No Paraíso, a mancha dos bombeiros
Em maio, o Conpresp publicou a resolução de abertura do processo de tombamento de uma área chamada “mancha dos bombeiros”, que compreende as ruas Manoel da Nóbrega, dos Bombeiros, Tutóia e a Avenida Brigadeiro Luís Antônio.

O perímetro engloba, majoritariamente, casas geminadas e vilas de casas, mas também o Conjunto Almirantes, dois edifícios, um dos poucos da cidade projetado pelo arquiteto paranaense Jaime Lerner. Outro imóvel protegido é uma casa na Brigadeiro, onde morou o escritor Oswald de Andrade.

Hoje, há dois grandes empreendimentos sendo lançados na área, um da construtora Even e outro da Setin, porém seus terrenos não foram abarcados pelas restrições. Em nota, a A Setin Incorporadora informou que “não foi afetada pela decisão do Conpresp, pois, quando saiu a decisão, a empresa já tinha todos os imóveis demolidos e alvarás emitidos, inclusive o de execução, que permite o início das obras”. Já a Even destacou que “tem como principal atuação as Zonas Sul e Oeste de São Paulo” e “tem todas as aprovações legais necessárias em níveis municipais, estaduais e federais, e que não tem conhecimento de decisões que afetem os terrenos da companhia”.

O advogado Arthur Badin, que mora na região, foi o autor do pedido de tombamento, e argumenta que o território, que abriga oito vilas e travessas com casas das décadas de 1930 a 1960 “emoldura um quadro social vívido, onde uma população diversificada convive e frui coletivamente do espaço público de uma forma muito diferente da esterilidade das relações humanas que se vê nas porções mais verticalizadas da cidade”.

— É possível a cidade se modernizar, se adensar, sem necessariamente verticalizar tudo. O urbanismo tem que se saber conciliar os imperativos de modernização e adensamento da cidade, que são legítimos, com a preservação dos seus modos de vida e que não necessariamente sejam todos feudos modernos, em que a pessoa entra no seu condomínio, não quer saber o que está acontecendo do lado de fora — comenta.

Em Pinheiros, proteção a escadarias, mercadão e vilas
Em 2022, o Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) recebeu vários pedidos de moradores de Pinheiros para proteger imóveis e vilas no bairro. Então, neste ano o órgão encaminhou um estudo para o Conpresp a importância histórica da chamada Vila Cerqueira César, que engloba diversas quadras. Segundo o relatório, a primeira etapa de ocupação da área data de 1890, na fase suburbana. Depois, o local passou por uma transformação para a fase urbana, de 1930 a 1954 e a partir de então passou para a fase metropolitana. Hoje, Pinheiros é uma área com farta oferta de transporte público, pois tem três estações de metrô, corredores de ônibus em diversas avenidas e várias ciclovias.

A ideia é preservar uma miríade de imóveis, que vão desde igrejas e o Mercado Municipal de Pinheiros até vilas, casas e predinhos baixos. Um dos perímetros protegidos são as chamadas Vilas do Sol, um quadrilátero de casas e prédios baixos no entorno das ruas Mateus Grou, Rua dos Pinheiros, Arthur de Azevedo, Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, Pascoal del Gaizo e adjacências. A Escadaria das Bailarinas é outro local protegido: ao longo do escadão, há diversas casas de muros baixos, mas um terreno ao lado foi demolido recentemente e dá a pista da transformação no bairro.

O arquiteto e paisagista Michel Chaui do Vale, 41 anos, que mora em Pinheiros há 23 anos e integra o Movimento Pró-Pinheiros, é um defensor desse tombamento. Para ele, a proteção se justifica porque os locais, ainda que não sejam elementos de arquitetura monumental como os prédios do Centro, por exemplo, “têm características típicas de diferentes momentos em que foram construídos”.

— São testemunhos de habitação de classes operárias e médias, habitações unifamiliares ou coletivas, conjuntos arquitetônicos típicos de determinados grupos sociais e profissionais da construção civil, ou seja, compõem um panorama histórico de arquitetura e de ambiências muito significativas para o bairro e para a cidade — aponta.

O arquiteto e urbanista José Eduardo Lefevre, professor da USP e ex-presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), afirma que o tombamento é um “assunto complexo” e que é difícil conciliar os desejos por adensamento e preservação.

— No caso de Pinheiros, por exemplo, há áreas extremamente ocupadas, adensadas, como os arredores do Largo de Pinheiros, outras menos adensadas. A mudança ocasionada pela verticalização leva a mudança na forma de uso das ruas, comércio e no meio dessas transformações estão as vidas das pessoas. A cidade muda e nós não temos controle, como é que vou impedir que tirem o sol da minha casa? Preciso convencer muita gente, mudar a legislação, é complicado — ressalta — Mas a verticalização é uma solução para resolver problemas de alojar uma população muito grande, muito densa, que de outra forma se espalharia por um território enorme na cidade, a verticalização permite, por exemplo, que o metrô possa atender uma quantidade maior de pessoas. É necessário pesar em cada caso quais são as vantagens e desvantagens.

Alguns exemplos de bairros tombados em São Paulo são o Pacaembu, os jardins Europa, América e Paulistano e o Alto da Lapa, que são locais onde não são permitidos prédios altos e as atividades comerciais são restritas. Para construir e fazer reformas nestes bairros, é preciso pedir autorização para os órgãos de tombamento, o Conpresp e o Condephaat.

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